O padre Cardoso trabalhou na paróquia Nossa Senhora da Glória de 1987 a 2007. Bem no meio desse período, eu fiz catequese lá. Ia periodicamente a uma salinha junto da igreja, onde estudava com crianças bem mais novas do que eu — eu vinha de outra cidade, e lá as coisas tinham sido diferentes. Às vezes ao domingo eu ia à missa também.

Lembro de algumas coisas. Uma vez cheguei meio cedo na catequese e fiquei esperando na salinha, mas bem naquele dia o padre resolveu que era uma boa ideia falar diretamente com a garotada e foi arrebanhando cada um que chegava lá para perto do altar — mas pelo jeito eu cheguei antes dele. Quando já tinha passado uns 15 minutos do início da aula, concluí que aquilo não estava certo (talvez cancelaram?) e, quando fui sair, percebi que estavam todos lá na frente ouvindo o padre. Que mico.

Anos mais tarde, ouvindo as missas da música clássica, lembrei dos cantos de domingo. Percebi então que o que cantávamos junto com o padre eram traduções do latim. Então aquele trecho que dizia assim (lembro da melodia ainda), “glória a Deus na imensidão e paz na terra ao homem, nosso irmão”, só pode ter vindo do “gloria in excelsis deo et in terra pax hominibus bonae voluntatis”. A mensagem em português é mais moderninha, pois considera que todos os homens são nossos irmãos, mas em latim a paz só vai para os homens de boa vontade. Tinha também aquela parte (de novo a melodia), “piedade, piedade de nós”, em que todo o peso do “Kyrie, eleison” é perdido.

Um dia o padre Cardoso disse algo que imediatamente me deixou desconfiado. Ele disse assim num tom jocoso:

— Todo bebê diz sempre a mesma primeira palavra. A mãe ouve e já sai dizendo que o bebê chamou por ela. O pai diz que certamente ele falou “papai”. E a avó diz que o bebê deve estar com sede, por que disse “água”.

O semblante do padre então ficou sério, e ele prosseguiu:

— Na verdade o bebê está dizendo “abba”, que significa “pai” em aramaico, que é a língua de Jesus. O bebê está chamando pelo Senhor, criador dele.

Até que ponto o padre Cardoso acreditava de fato nessa história eu não sei; mas, como a própria religião, é difícil demonstrar sua falsidade. A única coisa que se pode contestar é se o bebê está ou não chamando o criador, porque realmente “abba” é “pai” em aramaico, e realmente é muitíssimo comum que os primeiros sons emitidos pelos bebês se pareçam com “abba”.

A explicação da Wikipédia é que os pais associam os primeiros sons que os bebês fazem a si mesmos, mais ou menos como o padre Cardoso falou. Então os bebês falam “abba” (ou “mama”, ou “papa”, ou “baba”) primeiro porque esses sons são os mais fáceis para eles. Aramaico é só mais uma língua em que isso acontece.