Sempre achei que o nome dele fosse Oleg (pronuncia-se “Alhêg”). Descobri que os amigos o chamam de Ali (“Alí”) e perguntei por quê. Ele mesmo explicou que o nome verdadeiro dele é Muhammed Ali, mas que muitos o chamam de Oleg, porque é mais fácil.

Ele me levou até uma região mais distante da cidade, em que muitos constroem casas e poucos vivem em apartamentos. O lote que ele comprou ainda está pouco desenvolvido — e os amigos, a maioria militares como ele — não perdoam e fazem piadas constantes sobre o estado da rua, o lixo nos terrenos vizinhos, o vento que é constante por lá.

A ocasião para reunir os amigos do exército (e a minha improvável pessoa) é o seu aniversário. Certamente Ali já celebrara com familiares, e talvez com outros amigos, a mesma ocasião — mas aqui era uma festa informal, somente para homens, sem maiores compromissos. Assim ninguém precisa se preocupar com o vocabulário (xinga-se à vontade) ou com o cuidado de esposas e crianças.

Ali planeja construir uma casa no terreno. Até agora, construiu uma espécie de garagem, com um segundo piso improvisado mas aconchegante. O plano é se mudar com a família — ele, a esposa e a filha de seis meses — para lá antes de o inverno chegar. Depois, com o tempo, construirá a casa em si. Tudo feito com as próprias mãos.

Alguns amigos bebem, outros não. Aqueles que não bebem estão na direção de algum carro. Na Rússia, às vezes a segurança não é a preocupação mais elevada — usar cinto de segurança, em qualquer assento, não é levado a sério —, mas ninguém nunca dirige alcoolizado. Se o plano é dirigir de manhã cedo, na noite anterior não se bebe.

Um deles, Igor (“Ígor”), descobre o segundo piso na garagem e decide dormir lá. Um outro chama chama à festa mais um homem, que não beberá e será o motorista sóbrio. E assim eles podem beber. Ninguém, porém, dirige alcoolizado. Um deles, Alexey (“Alecsêi”) permanece sóbrio até o fim.

Igor explica que não quer morar em apartamento, porque ele cresceu num vilarejo. Na infância, explica que não tinha um sistema moderno de aquecimento em sua casa. Havia dois fornos, grandes, em sua casa e sobre um deles a família dormia. Na escola já havia aquecimento com canos de água quente, mas ele explica que no tempo do pai dele ainda havia fornos na escola também.

O vilarejo em que Igor nasceu tinha cinco ruas: a principal e outras quatro. Cada uma das quatro ruas tinha habitantes de origens diferentes: da Sibéria, do Cazaquistão, etc. Ele mesmo se considera metade judeu, metade ucraniano.

Já Sergey (“Serguêi”) diz que, etnicamente, é 100% ucraniano, apesar de ter nascido na Rússia. Apesar de uma infância urbana, também quer construir uma casa longe da cidade. Ele diz que o tamanho ideal para o terreno de uma casa é 1 hectare: é o suficiente para sair nu da banya sem incomodar os vizinhos.

Ali diz que nasceu no Tajiquistão e que fala, além do russo, tajique e árabe. Ele explica que tajique e persa são línguas próximas. De repente vem a sensação estranha de que existe, enfim, algo que une um brasileiro e um tajique: as línguas nativas são parentes. Para confirmar a suspeita, peço a ele que conte até dez, e eu ouço: “iá, dô”…

Num fogo improvisado no chão, são assados sequencialmente pedacinhos de porco, peixe (Beloribitsa) e frango. A salada que acompanha é feita com pepino, tomate, cebolinha e salsinha. O vento é forte e constantemente derruba um copo ou leva um prato embora; mas ninguém se incomoda — o ambiente é relaxado.

À disposição estão vinho, cerveja e uísque. Alguns bebem mais, outros menos. A garrafa de uísque rapidamente se esvazia à medida que alguns ficam cada vez mais empolgado e extravagante. Quase todos fumam. De vez em quando um potinho de plástico com umas bolinhas pretas. É o nasvay (“nassvái”), também um produto do tabaco: colocam as bolinhas na mão e em seguida na boca, entre o lábio inferior e os dentes.

Sergey mostra as fotos da sua vida militar na Síria. Visitou várias regiões e as fotos são de paisagens e monumentos. Uma das fotos exibe uma igreja ortodoxa com ícones em que há inscrições não em grego ou russo, mas no alfabeto árabe. Faz quase três anos que ele está afastado do exército: sofreu um acidente sério e ficou sem caminhar quase dois anos. Após seis operações, já caminha bem. Diz que o exército está tratando muito bem da sua condição, e que uma sétima operação ainda será feita em breve.

Ali é muçulmano e não come carne de porco nem bebe álcool. Já estivera com ele em outras ocasiões e de fato ele havia se abstido. Nessa ocasião, porém, ele come um pouco de carne de porco e bebe um pouco de cerveja. Fala a um dos amigos que, se alguém lhe perguntar, deve dizer que a carne de era gado.

Sergey e Igor dizem que gostariam de visitar o Brasil, mas que, devido ao trabalho deles no exército, não podem solicitar passaporte. Explicam que alguns militares podem, outros não, dependendo do posto que assumem. Dizem, porém, que querem visitar outras partes da Rússia, especialmente aquelas que ficam longe de Moscou — onde as pessoas são mais pessoas do que em Moscou, explicam.

Quando volto para casa, fica aquela sensação de que o mundo é muito mais diverso do que o meu cotidiano. Quantas nações, histórias e hábitos que se encontram na Rússia.