[21 de dezembro de 2008. Alguns links não funcionam mais. Perdão pelo tom pretensioso. “Esqueci” de dizer que a frase eu conheço por causa da Turma da Mônica.]

Hoje estava conversando com um amigo e, para justificar um ponto de vista meu, recorri à celebre máxima: “navegar é preciso; viver não é preciso.” Não foi a primeira vez que a usei, e sempre que o fiz fiquei em dúvida se quem a disse primeiro tinha em mente o mesmo sentido que eu. Decidi, pois, buscar o contexto em que ela foi usada originalmente.

A frase é comumente atribuída a Fernando Pessoa; uma busca no Google basta para confirmar isso. Mas, algum tempo atrás, li em algum lugar que, na verdade, essa frase não é dele. A página do Wikiquote sobre Fernando Pessoa esclarece essa questão: a frase foi apenas usada por ele, que a tirou de outro lugar. De fato, no próprio poema em que ela aparece, o autor sugere que a frase seria dos “antigos”. Eis aqui o poema completo, copiado desta página:

Navegar é preciso

Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:

“Navegar é preciso; viver não é preciso.”

Quero para mim o espírito [d]esta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:

Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande,
ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo.

Só quero torná-la de toda a humanidade;
ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso.

É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.

Fiquei satisfeito quando li o poema de Fernando Pessoa; não apenas porque ele é belo em si mas também porque descobri que sempre usei a frase no mesmo sentido dele. A minha vida não é minha, ela é da minha obra: a vida há de ser empregada para trazer à existência a obra, mesmo que uma conseqüência disso seja uma vida um pouco mais amarga. Sabemos que Fernando Pessoa atingiu seu intento: tornou sua vida grande e, assim, engrandeceu a humanidade.

Mas, independentemente da interpretação de Fernando Pessoa, quem seria esse antigo que proferiu tão calejadas palavras? A própria página de onde copiei esse poema traz uma nota de Soares Feitosa que dá uma excelente pista: viria da obra “Vida de Pompeu”, de Plutarco, e a original seria: “navigare necesse; vivere non est necesse.” Acontece que Plutarco escreveu em grego, não em latim. Não que Fernando Pessoa tenha necessariamente lido o original em Grego, mas a frase em latim é apenas uma tradução. Pesquisando um pouco, aprendi que Plutarco escreveu uma obra chamada “Vidas Paralelas”, que consiste em biografias de homens famosos de outrora. Consta, inclusive, a biografia de Pompeu, que teria dito a tal frase. Há varias versões dessa obra de Plutarco na Internet; procurando nelas, vê-se que a frase aparece no capítulo 50 da biografia de Pompeu. O capítulo 50, no original em grego, é este (copiado daqui):

Ἐπισταθεὶς δὲ τῇ περὶ τὸ σιτικὸν οἰκονομίᾳ καὶ πραγματείᾳ, πολλαχοῦ μὲν ἀπέστειλε πρεσβευτὰς καὶ φίλους, αὐτὸς δὲ πλεύσας εἰς Σικελίαν καὶ Σαρδόνα καὶ Λιβύην ἤθροιζε σῖτον. ἀνάγεσθαι δὲ μέλλων πνεύματος μεγάλου κατὰ θάλατταν ὄντος καὶ τῶν κυβερνητῶν ὀκνούντων, πρῶτος ἐμβὰς καὶ κελεύσας τὴν ἄγκυραν αἴρειν ἀνεβόησε· “Πλεῖν ἀνάγκη, ζῆν οὐκ ἀνάγκη.” τοιαύτῃ δὲ τόλμῃ καὶ προθυμίᾳ χρώμενος μετὰ τύχης ἀγαθῆς ἐνέπλησε σίτου τὰ ἐμπόρια καὶ πλοίων τὴν θάλασσαν, ὥστε καὶ τοῖς ἐκτὸς ἀνθρώποις ἐπαρκέσαι τὴν περιουσίαν ἐκείνης τῆς παρασκευῆς, καὶ γενέσθαι καθάπερ ἐκ πηγῆς ἄφθονον ἀπορροὴν εἰς πάντας.

Minha própria tradução dessa passagem fica assim:

Sendo responsável pela administração e pelos negócios do trigo, ele enviou a muitos lugares emissários e amigos, e ele mesmo, navegando para a Sicília, a Sardenha e a Líbia, recolheu trigo. Estando prestes a zarpar, porém, havia forte vento sobre o mar, e os pilotos hesitaram; embarcou primeiro e, ao ordenar que erguessem a âncora, bradou: “navegar é preciso, viver não é preciso.” Com tal audácia e resolução, e também com boa fortuna, encheu de trigo os portos e de navios o mar, de sorte que forneceu até aos estrangeiros o excedente daquele suprimento e houve, como que de uma fonte, copiosa corrente para todos.

Creio que a interpretação de Fernando Pessoa está, de certa forma, presente no texto de Plutarco: para Pompeu, nem sua vida nem a de seus subalternos tinha valor; era necessário navegar a qualquer custo. A distinção principal surge quando se considera a natureza do empreendimento dos dois homens: Fernando Pessoa estava disposto a criar, Pompeu a mercadejar.

De minha parte, acho muito belo o princípio que se deriva dessa máxima. Conduzir a vida de acordo com ele, contudo, é empresa árdua e ingrata, e não sei até que terras conseguirei navegar!